Diziam que aquele menino dobrou esquinas erradas. Mas usavam um tom acusador, enaltecido por palavras duras e expressões nocivas. Ousavam comentar que o menino entrara por vielas perigosas e delas saiu ileso e vitorioso, deixando nas beiradas somente vítimas.
O que se sabia do menino era que passava marcando o trajeto com um rastro de contradições. A mãe sempre apostara nele como o salvador. O pai pouco ligava, tanto que saiu um dia decidido a não voltar. Entregou a prole ao desamparo, inclusive aquele que estava por vir, ainda balançando na barriga da mulher, uma morena de cabelos encaracolados e dentes postiços na arcada inferior.
Herança de um passado de terror. Ela não havia perdido os dentes por causa de alguma enfermidade nas gengivas. Três deles cairam quando o marido acertou o queixo da mulher com os punhos cerrados, depois de uma briga por causa de bebedeira. Outros quatro foram comprometidos. Sem recursos para um bom tratamento, ela optou por arrancar todos.
E o menino? Ah, sempre se posicionou ao lado da mãe. Mas da maneira que lhe era possível. Pequeno no tamanho e grande no medo do pai, restava ao menino solidarizar-se com a mãe depois dos embates, às vezes físicos, outras vezes psicológicos.
Filho mais velho, assumiu com a mãe, depois da partida do pai, as preocupações com a casa e os irmãos. Matriculou-se no horário noturno, trabalhou como entregador de mercearia, fez bico na feira de domingo como ajudante, aproveitou horários de folga para ser negociante de passes de ônibus e, aos dezoito, fez tiro de guerra e amargou muitos castigos como sentinela, até por não engraxar os coturnos do jeito que o sargento queria.
Depois estudou para um concurso público e passou em terceiro lugar. Foi convocado, fez outro concurso, foi nomeado, passou em outro concurso, comprou um carro velho, depois trocou por um seminovo, até aparecer com um zero quilômetro.
Mas foi tudo na batalha, sem treta e sem manha. Por ser reservado, postura que herdou da mãe, cresceu aos olhos vidrados dos vizinhos usando do direito de não comentar nada da sua vida e o de sua família com ninguém.
Inquieta, a vizinhança decidiu imputar qualidades negativas no menino em comentários que nunca deram em nada, mas não deixavam de ser injustos: "Enriqueceu muito rápido esse menino. Olha que roupa ele usa. Será que..."
Moral da história: quando o trabalho enobrece o trabalhador, quantos comentários ruins ele provoca.
Há 3 anos
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