domingo, 29 de agosto de 2010

Música - Para saber o valor dos cadarços descartados

Sapato Velho, composição de Mu - Claudio Nucci - Paulinho Tapajós, ficou para a eternidade na interpretação de Roupa Nova. No vídeo baixado do Youtube, quem canta é Paulinho Tapajós.

Você lembra, lembra! / Daquele tempo / Eu tinha estrelas nos olhos / Um jeito de herói / Era mais forte e veloz / Que qualquer mocinho / De cowboy...

Você lembra, lembra! / Eu costumava andar / Bem mais de mil léguas / Prá poder buscar / Flores-de-maio azuis / E os seus cabelos enfeitar...

Água da fonte / Cansei de beber / Prá não envelhecer / Como quisesse / Roubar da manhã / Um lindo pôr-de-sol / Hoje não colho mais / As flores-de-maio / Nem sou mais veloz / Como os heróis...

É! Talvez eu seja / Simplesmente / Como um sapato velho / Mas ainda sirvo / Se você quiser / Basta você me calçar / Que eu aqueço o frio / Dos seus pés...

Água da fonte / Cansei de beber / Prá não envelhecer / Como quisesse / Roubar da manhã / Um lindo pôr-de-sol / Hoje não colho mais / As flores-de-maio / Nem sou mais veloz / Como os heróis...

É! Talvez eu seja / Simplesmente / Como um sapato velho / Mas ainda sirvo / Se você quiser / Basta você me calçar / Que eu aqueço o frio Dos seus pés...

Talvez eu seja / Simplesmente / Como um sapato velho / Mas ainda sirvo / Se você quiser / Basta você me calçar / Que eu aqueço o frio Dos seus pés...

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Crônica - Olha ele ai de novo!

A moça se veste de santa e se encapa de talento. Interpreta algo divino, além das personagens da terra que são sólidas, não onipresentes e muito menos onipotentes. Ela tenta e até consegue. Mantém em seus braços o boneco de uma criança que mexe as mãos. Fruto de uma engenharia simples, mas de resposta imediata diante de um público carente de apelos religiosos.

Quem faz o boneco da criança ter vida é a moça que interpreta a santa. Pelas costas ela enfia os dedos nos braços do boneco. Os dedos da moça mexem, os braços obedecem. A cada cédula de um ou dois reais depositados na caixa de sapatos colocado ao pé da santa que é atriz, a moça mexe os dedos e o boneco obedece simulando um agradecimento com os braços. A pessoa que fez a doação também leva uma mensagem entregue pelo boneco.

Isso comove, mexe com sentimentos, atiça o lado espiritual de cada ser humano que transita pelo Calçadão de Londrina e pára diante do espetáculo. Não se pode dizer que aquilo seja exploração da fé. A moça usa seu talento para defender o pão de cada dia e garantir o seu sustento e talvez também de uma criança, que não é o boneco que mexe os braços e entrega uma mensagem de agradecimento, mas é uma vida. Talvez um filho ou filha, um irmão ou irmã, um sobrinho ou sobrinha, uma mãe, um pai, um parente, um conhecido. As pessoas que a rodeiam e deixam cédulas ou moedas na caixinha estão ávidas por gestos espirituais num ambiente cercado de interesses materiais.

É uma espécie de reconhecimento de ambos os lados. Agradece-se por um momento de reflexão com dinheiro. Retribui-se com uma mensagem provavelmente simples, mas que para algumas pessoas é o que faltava naquele instante. Tal qual acontece logo em frente, com outro ator que se pinta de negro e faz diariamente o manequim vivo de um Calçadão destroçado após a destruição dos quiosques que abrigavam o comércio de lanches, revistas e jornais. Ele oferece um espetáculo, as pessoas que apreciam ajudam com as moedas.

Reforça-se: são dois talentos. Superiores ao dos homens que aparecem naquele lugar somente às vésperas de eleições. Interpretam pessoas preocupadas com o bem-estar dos outros. Interpretam educação e simpatia. Interpretam seriedade. Interpretam boa vontade. Depois dos votos nas urnas somem para os gabinetes e assumem carrancas, interesses pessoais e de amigos, antipatia e medo de apertar as mãos das pessoas que apreciam personagens como a moça que se faz de santa e o rapaz que simula ser uma estátua.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Crônica - Pingando óleo

Trabalhador não almoça. Come alguma coisa. E por culpa de um defeito no fogão, bem onde se aperta o botãozinho que dá chama para acender a boca, a lingüiça não pode ser fritada para entrar na marmita. Foi por isso que aquele ali trouxe hoje apenas feijão e arroz.

O complemento veio de um bar logo adiante. Pastel de carne, quentinho, com a massa borbulhada de um lado e estatelada de outro. Quase branca, sinal de que faltou fritura. Grossa e sem crocante, pesada, eternamente mastigável feito um chiclete ou uma bala de goma.

A carne era um bolo só. Não ficava soltinha dentro da encapadura de farinha de trigo. Uma pelota sem muito tempero e gosto duvidável. Nem cebolinha de cheiro se via em algum lugar.

Num canto do canteiro de obras, onde sobravam alguns tijolos, improvisou-se uma sala de refeições a céu aberto e sem mesa, longe de árvores que pudessem atrair pássaros deselegantes e prontos para as suas necessidades quem quer que esteja abaixo.

Comia-se de colher. Onde achar espaço para garfo e faca numa mesa tão desconfortável, as coxas das pernas? A primeira colherada, de arroz e feijão esquentado num fogareiro precário feito de restos de construção e acionado por gravetos recolhidos sem critério, esquentou o céu da boca, ardeu no dente cariado, arrastou na garganta e desceu, quebrando o impacto da fome.

Depois o pastel. Colocado de pé, a gordura desceu e respingou quando aquilo foi retirado do embrulho. Gotejou na calça ercardida e na primeira mordida estourou e fez o vento preso entre as massas fazer um pum. Emagreceu, fazendo a capa ficar mais mole.

Caiu no estômago e provocou azia. Foi uma tarde de queimação e desconforto. À noitinha, no caminho de volta para casa, o trabalhador comprou uma caixa de fósforo para dar chama à boca do fogão a gás.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Crônica - Andar em círculo

Como um cão atrás do seu próprio rabo. Assim fazem os que se negam a enxergar o futuro. Por isso não andam, apenas dão passos que levam ao mesmo lugar e tornam o ponto de partida uma estrada sem fim e sem rumo.

Martins sabia muito bem disso. Trabalhador de molhar a camisa e escorrer suor pelo rosto, ele aproveitava com plenitude o seu conhecimento acadêmico adquirido até o fim do ensino médio, somado à uma leitura crítica da realidade.

Da mesma forma Martins assimilava com cérebro e alma as coisas que eram ensinadas. Participativo, era presença certa em reuniões do sindicato e da associação de moradores do seu bairro. Ponderado, falava somente quando necessário. Mas a sua fala era um tiro certeiro. Por isso era temido por aqueles que se aproveitam de boa vontade das pessoas para transformar um encontro comunitário em palanque político.

Martins defendeu o quanto pode a participação de candidatos nas reuniões do sindicato, da associação de moradores e da igreja da qual participava. Para os argumentos de que a democracia exigia a presença dos políticos em seus encontros, para que os participantes soubessem quem são eles, Martins retrucava que havia outras formas dos pretendentes a cargos públicos se fazerem conhecidos.

Mas foi vencido na associação de moradores, ondfe apareceu um político se fazendo de pessoa humilde e gastando mais de uma hora da reunião para dizer que fez isso e fez aquilo. No sindicato, o mesmo homem que sempre defendeu o fim de algumas garantias trabalhistas posou de articulador incansável de projetos em defesa dos trabalhadores. Na igreja o homem envolvido em escândalos disse ser um fiel servo do Senhor.

Só acreditaram nesses políticos carreiristas os que andam para a frente, vislumbrando horizontes, e tem o ponto de partida como um lugar que ficou para trás.

domingo, 15 de agosto de 2010

Crônica - Ninguém trabalha tanto quanto ele

Vida dura. De manhã, visita à feira livre. Ainda de manhã, visita à outra feira livre. No meio da mesma manhã, parada na banca de pastel para engolir um de carne com café e leite. Dali seguiu pelas bancas. Que trabalho. Dar as mãos para todas as pessoas, feirantes e consumidores. Aquele comerciante estava com a mão molhada, credo. O carregador tinha calos, ui.

Ainda de manhã, duas reuniões. Uma para conversar sobre nada de interessante. O objetivo era conquistar simpatia. Outra para conversar sobre nada, a finalidade era estreitar relações.

O almoço foi num evento beneficente. Feijoada, arg. E nem está tão frio assim para comer tanta gordura armazenada nos joelhos e nas orelhas dos porcos. A linguiça estava rançosa e a couve aguada.

Depois daquele almoço outro almoço. Num lar de velhinhas, que tiveram a refeição daquele domingo patrocinada pelo visitante. E elas lá sabiam disso? Que nada. Comeram os frangos assados como fazem todos os dias. Tristes, olhar distante, encurvadas, esperando pela chegada dos filhos, que não vieram. Então o visitante se foi, acreditando ter cumprido com mais uma etapa de sua jornada de trabalho.

No começo da tarde visita a um campo de futebol, onde os boleiros estavam mais preocupados em garantir vitória do que dar as boas vindas a um estranho no meio. Depois outro campo, outro jogo, outros boleiros indiferentes.

Às seis, missa. Chegou quinze minutos antes, para ter tempo de dar uma volta pelos bancos e cumprimentar a todos. Nem o diácono escapou. O ministério da eucaristia até tentou, mas esbarrou nunca cadeira quando tentava dar a volta e teve que recuar para cumprimentar aquela espécie de trabalhador que vivia de cumprimentar os outros.

Só depois da celebração foi para a reunião do seu grupo político, onde só recebeu elogios dos partidários. Mesmo os contrários falaram bem dele e apresentaram prognósticos animadores. E nem ficaram vermelhos pela mentira.

E o político, candidato a outro cargo, considerou-se com o dever cumprido. Passou o domingo todo apertando as mãos de desconhecidos. Mãos nem sempre limpas, mas de pessoas honestas que pegaram na mão do político por educação.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Conto - O vento pesa (Final)

Uma rua deserta é um mar por onde se caminha entregue à ferocidade das ondas. É um vai e não vai meio trôpego, pisando num asfalto que parece líquido, de tão inconsistente que é. Isso acontece quando o coração pede para ir, mas as pernas recusam. O que a alma enxerga é o rumo certo, mas os olhos embaçam. É coragem e medo. Decisão e incerteza.

Lá adiante a figura de uma pessoa. Ela vai. Não se sabe a que ritmo. Parece lenta, mas pode haver ilusão de ótica. O andar deve ser vagaroso, mas provavelmente a necessidade de chegar seja urgente. Onde?

O algum lugar é a única certeza. O verbo é o pretende-se. Há um tempo, que se quer o pretérito perfeito. Mas pode ser o contrário. Ficar era um perigo e ir é um risco. Na pior das hipóteses, uma possibilidade adiante se abre. Depois outra e mais outra, atrás de tantas outras até que um dia acontece. Quando isso vier haverá riso e choro de felicidade. E se começará tudo de novo.

Lá atrás ficou uma marca. Na parede de uma loja desativada uma bandeira fincada num mastro de plástico. Não venta e o pano mole cai fechando o letreiro estampado em uma de suas faces.

Não há candidato e nem campanha eleitoral. Maria da Conceição deve participar da democracia apenas votando. Ainda não sabe em quem. Promete avaliar com rigor os que postulam algum cargo. A princípio ninguém ainda a convence.

Tem tempo pela frente para uma decisão acertada. Agora, indo, ela deixa nas suas costas um emprego que a deixava contrariada e vai em busca de uma ocupação que a faça sentir-se uma trabalhadora.

Maria da Conceição não sabe por quanto tempo terá que caminhar, mas tem certeza que chegará.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Conto - O vento pesa (5)

Mesmo esgotada fisicamente depois de cada jornada de trabalho, Maria da Conceição chegava em casa perto das oito e meia da noite e após preparar o jantar, lavar a louça, esfregar algumas peças de roupas e passar as que seriam usadas no dia seguinte ainda tinha dúvidas. E colocava-se a pensar, jogada sobre a rala espuma de um sofá velho, que aquilo não era um emprego.

Ser cabo eleitoral nunca havia passado pela cabeça de Maria da Conceição. Verdade. Embora não discriminasse quem recorresse a aquele tipo de ocupação, Maria da Conceição não entendia como era possível manter uma boa relação com um patrão em quem não se acredita.

Sempre fora assim. Nos pequenos empregos como doméstica, Maria da Conceição conseguia ser tão fiel à família que a contratava que tornava-se, às vezes, até confidente. Nas raras vezes em que enfrentou desacertos tratou de demitir-se.

Não por culpa dela, mas por tantas decepções que havia sofrido, Maria da Conceição era avessa à política feita da forma que os políticos de hoje em dia fazem. Em quem confiar, perguntava-se frequentemente. Maria da Conceição não chegou aos bancos de uma universidade, mas teve o privilégio de fazer um bom curso fundamental.

Se isso era pouco, ela tinha uma formação de berço tradicional. Rigorosa, mas de efeitos positivos. Maria da Conceição aprendeu em casa, com os pais, a respeitar e a pedir para ser respeitada.

Se não tinha livros para ler, aprendia sobre as coisas importantes da vida ouvindo muito o que as pessoas com mais conhecimento falavam. Maria da Conceição, enfim, sabia da vida por viver a vida de uma maneira produtiva.

Não era, portanto, por falta de estudo que Maria da Conceição poderia ser considerada uma ignorante de determinados assunto. Na política ela sabia, por exemplo, que alguns homens públicos aumentam em dez vezes a sua riqueza num mandato que dura apenas quatro anos, mas é cumprido pela metade. E aquele que era o seu padrão agora estava entre os que ela desconhecia a honestidade.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Conto - O vento pesa (4)

O café ficou pronto muito antes do sol mostrar a cara. Na verdade, lá pelas cinco da madrugada Maria da Conceição se pôs de pé, vencendo as dores das varizes que descem pelas duas pernas. As saliências formam mapas. Parecem rios e seus afluentes. Mancham a pele e obrigam a mulher a usar, mesmo no calor, calças compridas sobre meias de alta compreensão, que amenizam a ardência.

Ontem Maria da Conceição saiu pouco antes das sete da manhã de casa. Pegou um ônibus lotado e viajou o percurso de mais ou menos sete quilômetros pendurada no cano instalado no teto do veículo, substituindo os pingentes. De pouca estatura, ela é obrigada a se esticar, para não ser traída pelas curvas acentuadas e freadas bruscas. As pernas, doloridas, apresentaram no fim do dia mais efeito de ardência por causa do contorcionismo que todo o passageiro que viaja de pé num ônibus urbano é obrigado a fazer. E o percurso, que poderia ser vencido em meia hora, durou muito mais do que isso.

Maria da Conceição chegou ao comitê do candidato para o qual trabalha vinte minutos antes do horário de início da sua jornada. Foi o tempo necessário para ir ao banheiro ajeitar os cabelos e passar água fria no rosto. Depois retirou com o coordenador da equipe de rua o seu material de trabalho: a bandeira com o mastro de PVC e um bom punhado de “santinhos”.

Dali foi levada em uma perua Kombi para a área comercial de um bairro distante, junto com mais oito companheiras. Maria da Conceição ocupou a sua esquina, onde agitou a bandeira e distribuiu panfletos. O local, com pouco movimento de pessoas e de carros, permitiria um descanso, até uma sentadinha num banco próximo. Mas ela não quis se arriscar a ter que assinar uma advertência.

O almoço do dia foi pago pelo comitê da campanha: marmitex com arroz, feijão, carne de panela e salada. Nada mais justo, pois as trabalhadoras não teriam onde comprar por conta uma refeição barata e descente naquela localidade. Uma praça de gramas altas e árvores maltratadas foi o refeitório.

Comida pronta é de tempero suave. Há quem goste de sal, outros preferem o sabor mais suave. Maria da Conceição não se dava mais ao luxo de ter escolha. Bastava o arroz, o feijão, a saladinha, a carne com muitos nervos e excesso de gordura. Comia-se o que era possível. Com ou sem sal. De tempero adequado ou sem nenhum cuidado no preparo.

Mas ontem Maria da Conceição se limitou a apenas três garfadas de plástico. A comida não desceu por causa de um nó que fechou a garganta e encerrou a fome. Um nó de tristeza, de vontade de ter um emprego que ela tinha consciência, merecia. Para fazer o que sabia: lavar e bem, passar e da melhor forma, higienizar, limpar, caprichar e, enfim, viver com a certeza de que pode, com tarefas que parecem ter pouca importância, tornar o sujo em limpo, o ofuscado em transparente, a noite em dia, os dias em outros dias e a vida em uma possibilidade agradável de viver.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Sugestão - Sobre o emprego e o desemprego

O segundo conto da série "O vento pesa" está no blog http://walterogama.blogspot.com
Participe nos comentários ou envie e-mail para foradomercado@gmail.com ou walterrogama@gmail.com

Muito obrigado

Conto - O vento pesa (3)

Dignidade em qualquer situação. Maria da Conceição trazia esse ensinamento de berço. Às vezes,quando criança, enfrentou com os pais e os irmãos circunstâncias desesperadoras por falta de dinheiro. Nunca ao extremo da fome, porque se não havia arroz e feijão na mesa,recorria-se às abóboras plantadas no cercadinho cedido pelo dono da terra para a família tocar uma horta de sustentação.

Os apertos eram de roupas remendadas até as últimas possibilidades, calçados descolados de tanto uso, falta de recursos para a compra do material das crianças e privações que se acostumam, mas de maneira nenhuma são aceitas. Como a geladeira estragada que mais servia como um armário. O fogão de lenha com os tijolos despencando, as panelas amassadas e de cabos improvisados. As pequenas bacias de alumínio usadas como pratos. Ou a caneca feita de lata de óleo de soja, de uso comum para preparar o ralo café da manhã e para todos beberem água retirada de um poço.

Jamais os pais de Maria da Conceição pediram socorro de um parente ou conhecido para melhorar o conforto da família. Nem no inverno mais forte a falta de um chuveiro elétrico foi considerado um drama. Fervia-se a água num balde colocado sobre o fogareiro de tijolos montado ao lado da porta da cozinha. A água, com quentura de pelar, ia para uma grande bacia guardada num cercadinho sem porta. O aviso de que algúém usava o local para o banho era uma local, feito cortina, fechando a abertura. As crianças aproveitavam a mesma água para se banhar.

Quantas vezes Maria da Conceição empinou pipa feita com folhas de revistas velhas. Ver o pedaço de papel com os rabos torcidos, agitando-se ao vento, dava uma sensação de possibilidade. Voar, sair do lugar, ir adiante, subir, ver o mundo de cima. Por isso o tremular das bandeiras depois de anos, já na idade de frequentar uma escola no meio urbano, era uma nostalgia apreciável, de querer sentir o passado sem sair do presente e ir além, no calcanhar do futuro, talvez até para as birutas que nos desenhos animados mostram a direção do vento nos campos de pouso e decolagem dos aviões.

Nada a ver com a bandeira que Maria da Conceição segura numa esquina do centro da cidade. Ou não? É um emprego. Maria da Conceição honra-o. Tem muita gratidão à vizinha que a levou até o escritório que a contratou. No caminho, recebeu orientações: deveria falar à pessoa que fez a entrevista que era eleitora do homem que tinha o nome e o número na bandeira, mesmo que não fosse votar nele.

E Maria da Conceição não tinha nenhuma informação dele. Não sabia se era honesta e trabalhador. Quando viu a foto do homem num enorme cartaz pregado na parede, não sentiu confiança, não percebeu o coração aceitar aquele rosto com expressão sorridente, mas falsa. Mas prometeu a si mesma que, trabalhando para ele, se esforçaria para conhecê-lo. Se se ele não fosse um homem justo, seguiria os conselhos da vizinha: "Trabalhe com honestidade e dignidade para ele, pois o seu papel não é nem de pedir voto para ele. É de apenas mostrar o nome e o número dele nessa bandeira que você vai segurar na esquina. Faça isso, é a sua função".

Se assim fosse, Maria da Conceição, num estalo, sentiu que Deus a perdoria por precisar do emprego de uma pessoa em quem não confiaria. Um dia, no ônibus, alguém havia comentado com outro e Maria da Conceição ouviu: "Quantos ganham milhões e enganam do patrão aos colegas e inclusive a si próprios?"

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Crônica - Solidariedade do almoço

A comida nunca chega quentinha. Veja que o arroz e o feijão tem uma quentura de banho-maria, quase um morno, às vezes chegando ao frio. Entre o comer e o largar tudo no prato escolhe-se, normalmente, a terceira alternativa: saciar a fome.

É a opção do almoço para João, Maria, José, Marlene, Manoel, Regina, Ricardo, Samara e tantos mais. Trabalhadores, eles manipulam a necessidade de se alimentar com estripulias. Perto do pagamento, o peso do self-service é mais digestível. Longe do pagamento, come-se menos.

Hoje João encheu o prato de folhas. O alface, a couve, o agrião e a acelga deram cor verde ao bandeijão, que ficou leve e custou pouco. Maria enfeitou a sua salada de repolho com o alaranjado da cenoura em rodelas. José justificou indisposição. Mas pegou arroz, feijão e nada mais, em quantidade do organismo aceitar sem queixa mesmo que o seu dono reclame de enjôo.

“Isto aqui não é um restaurante, é um ponto de encontro”, gritou Marlene, lá de um can to, quando colocaram reparos no tamanho do seu prato: um raso de salada, um rasinho de arroz e uma tirinha de carne. “Eu também não sinto fome no almoço, mas tenho que sair do escritório pelo menos nesse horário senão o dia fica mais longe”, acrescentou Manoel, que escolheu apenas um pedaço de lasanha e um arroz com feijão.

Ambos arrancaram olhares de consentimento e frases tímidas de aprovação. Outras marias e outros joãos, josés, manueis, marlenes e reginas também faziam o almoço de alguns dias antes do pagamento. Era prudência, muito mais do que regime alimentar ou indisposição. Com pratos feitos na proporção das economias que ainda restavam nas carteiras e nas bolsas.

Refeição de trabalhador tem tamanho e dia certo. Nunca o apetite é igual. Normal mesmo, pelo menos naquele restaurante, é a silenciosa compreensão da capacidade de cada frequentador de saber os apertos dos outros, colegas ou conhecidos eventuais que dividem mesas e circunstâncias na hora do almoço. É uma espécie de solidariedade.

domingo, 1 de agosto de 2010

Conto - O vento pesa (1)

Maria da Conceição está trabalhando. Sim, diz-se assim secamente, sem protocolo e nota introdutória: Maria da Conceição está no trabalho. Porque trabalhar, para Maria da Conceição,não é nenhum sacrifício. É, antes de tudo, uma necessidade. Faz parte do cotidiano desta mulher, hoje com 47 anos, quatro filhos, o mais novo com 12 e a mais velha com 18.

Muito lá atrás, Maria da Conceição ainda menina, ela já labutava no meio do roçado, chapéu de palha para aliviar a queimadura do sol na pele do rosto, ainda que protegido com um lenço que descia dos cabelos e tinha o nó atado no queixo. Calejava as maõs com o cabo da enxada, mesmas mãos que ao entardecer esfregavam roupas sujas no tanque ao lado da casa.

Sempre assim. Depois da roça, na cidade Maria da Conceição fez de tudo um pouco. Varreu, lavou e passou em casas alheias, montou em ônibus de sacoleiros para trazer mercadorias e vender nas feiras, bordou, pintou e costurou na pretensão de ganhar com o negócio de artesanato. Voltou para o emprego de doméstica depois que perdeu o marido, aquele que retorno para o Mato Grosso tocar fazenda de soja e nunca mais apareceu em casa para dar bom dia aos filhos e boa noite à mulher.

Conseguiu até carteira registrada no último emprego. Direito a passe de ônibus e, de vez em quando, de acordo com o humor da patroa, uma quase cesta básica. Ia tudo bem. Mas o menino de 12 adoeceu de uma doença que médico nenhum sabia o que era. Desinteria um dia, ressecamento em seguida, febre de hora para outra, alucinações e uma espécie de uivo baixinho. Diziam a dona Carolina vizinha, meia que bruxa por causa de advinhação, que era doença de cabeça por causa da saudade do pai.

Sem cura, o menino estava um dia bom, mas no outro entregava-se à crise. Uma repetição de semanas e meses, até que a patroa dispensou Maria da Conceição por causa das faltas para socorrer o filho.

Ali é que aconteceu o que ninguém quer que aconteça. Com 46 anos, Maria da Conceição não conseguiu colocação. Até para empregada doméstica ela era considerada velha. E olha que Maria da Conceição, de pele morena, tinha uma aparência jovem e uma disposição de menina.

Só um ano depois,já batendo dois meses de completar idade nova, Maria da Conceição conseguiu um emprego de carteira registrada, direito a passe de ônibus e obrigação de aguentar sol na moleira e chuva nas costas.

Lá está ela, numa esquina, empunhando a bandeira de um candidato a governador que ela nunca viu, jamais soube de alguma coisa que ele houvesse trazido de bom para a sua gente, e nem alimenta expectativa de um dia ter qualquer benefício por ela ter, na campanha eleitoral, segurado a bandeira contra o vento, de forma que o nome do homem pudesse ser visto pelos motoristas que passaram por aquele lugar.